sábado, janeiro 8

animah

Eu caminho pela rua. Vejo um buraco na calçada. Apresso o passo para ganhar balanço. No momento preciso do salto reparo no atacador solto e tropeço no mesmo. Com todas as forças que me restam agarro-me como posso para não cair. Fico esticado com as mãos e os pés apoiados nas bordas do buraco. Noto angustiado que não posso mexer um dedo sem resvalar para dentro do buraco profundo e negro. Começo a ouvir as vozes de muitas crianças e de duas mulheres adultas que parecem discutir o estranho fim da telenovela da tarde. Embrenhadas na conversa, as educadoras seguem alienadas e nem reparam que me estão a usar como prancha de passagem. Uma e a outra de seguida calcam-me as vértebras e eu heroicamente mantenho-me sem vacilar. Os meus gemidos são abafados pelos gritos entusiasmados das crianças e o transito na rua ao lado. Passado o saltitante grupo sinto-me descontrair e esse é o meu erro, os meus dedos dão de si e estalam cartilagens com ruídos que só eu ouço. Estou perdido, penso. Espero que a vida me passe em frente aos olhos mas frustrado apenas me consigo recordar do que comera no ultimo lanche. Finalmente sinto-me cair em câmara lenta. Reparo impressionado na lenta passagem do tempo independente do rápido circular dos meus pensamentos. Lembro-me de transformar a lentidão perceptual em lentidão física real. Alguns gemidos cortam a minha concentração enquanto suavemente pouso no fundo do buraco. Para minha surpresa não terei caído mais do que um metro. Perante o absurdo abro bem os olhos para perceber se estarei a sonhar. Os ocupantes do buraco permanecem quietos e aparentemente confortáveis embora arrumados como sardinhas no espaço limitado. Eu próprio sou invadido com uma estranha sensação de conforto e empatia. Sinto os meus joelhos a dobrarem e o meu corpo cansado a encontrar o seu lugar natural. As paredes escuras tecidas em algodão embalam-me até o tempo parar. Nasce o dia. Acordo com o sol nos olhos e os resmungos de alguém incomodado pelo modo como apoio o cotovelo esquerdo. Levanto-me e sem esforço saio do buraco. Não aperto o atacador solto. Continuo o caminho com muito menos receio de buracos profundos e escuros. (Jun 28)
E se tivesse apertado os atacadores naquele dia? Agora sempre que caminho e me acontece ter um atacador solto penso, que outros receios terei eu que me toldam o julgamento? Que me escudam, me couraçam, que me protegem de todos os elementos?
.Blogger Shade of blue 20/4/11 11:44 da manhã