quinta-feira, março 31

Shade of blue Um, dois, três, quatro...

Terças, Quartas e Quintas o senhor da mesa do canto pousava os óculos na mesa, tirava o lenço com as suas iniciais do bolso e desdobrava-o e voltava a dobrá-lo quatro vezes.
Sempre quis perguntar-lhe a razão daquele ritual obsessivo, mas voltaram as Terças, as Quartas e as Quintas feiras mas nada do senhor e do seu lenço.
Por vezes, enquanto limpo os copos à frente do balcão deserto do bar, os meus olhos tresmalham desenhando um infinitésimo distraído no horizonte e aí, alheio das minhas mãos atarefadas, penso:
Talvez ele quisesse ver se ainda se lembrava de como fazê-lo.
1, 2, 3, 4...1, 2, 3, 4...
ou...
Talvez buscasse, desfocados os gestos, subtrair a nitidez pousada na mesa, à natureza ofuscante da memória de um momento no tempo. Talvez ao desdobrar os sentidos concisos, apenas os pudesse suster unidos por breve espaço de tempo, não resistindo então, a voltar a dobra-los cuidadosamente.
Tinha sido ali, naquela mesa junto ao canto, que tudo se passara...
Um inicio e um fim.

.Blogger animah 1/4/05 5:26 da tarde  

sexta-feira, março 18

animah

Deu 3 largos passos até ao centro do salão e não se contendo soltou num suspiro a palavra-passe. Leve quando a colhera, esta caiu no chão de mármore pesada, criando um estridente eco caleidoscópico.
Viu-se então rapidamente rodeado de quatro podengos treinados para snifar vestígios de software pirata em pastilhas de memória usb. Uma lágrima clara de suor percorreu-lhe a espinha.
parados, os cães retesavam a vontade, puxados pelas ligações rápidas cruzadas na matriz do chão. um pequeno robot surgiu e fez sumir a palavra chave através de uma entrada na base da escadaria. continuou à espera, suspenso.
.Anonymous Anónimo 21/3/05 10:31 da manhã  

sábado, março 12

Anónimo

o homem desceu das amarras do navio e plantou os pés no convés.
em frente perfilava-se a montanha que procuravam. se não se apressassem ela fugiria como das outras vezes, deixando-os à bolina do vento suão.
.Anonymous Anónimo 21/3/05 10:27 da manhã  
Doze anos. Fazia hoje precisamente doze anos que procurava aquela maldita montanha. Só os seus contornos já transpiravam malícia e ainda assim tão pouco faziam adivinhar da perversidade dos seus estranhos habitantes.
.Blogger Shade of blue 24/4/05 9:15 da tarde  

domingo, março 6

Anónimo

estou inquieto. o sangue, a rumurejar, lateja nas têmporas, vejo turvo. a noite, a noite que caíu célere, sem aviso, tolhe os passos, faz de tudo aviso. os pés colhem caminho, sós, automatos. batem o chão, cegos, sem dono, arrastando tudo o resto com eles. com o desvario encepei no muro, caí de chape na água fria da fonte. de olhos abertos, no rompante, decidi afundar-me. abri um ralo e sumi-me. do lado de lá, alijado da carga pude sossegar e ler um livro em silêncio: era uma vez um rio e um poeta pastor...

quarta-feira, março 2

Anónimo o autodidacta

O autodidacta saíu da imponente biblioteca da sua cidade natal depois de 28 anos de visitas diárias. Parou no topo da escadaria de pedra para apertar o casaco. Os degraus e o largo estavam desertos e brancos com a neve fresca. Sabia para onde ir. Tirou do bolso uma caneta e desenhou na palma da mão linhas sobre as linhas da pele. Depois dessa manhã nunca mais foi visto.
exactamente a 17 de Novembro caíu o XXI tomo da Enciclopédia Britannica no chão. as mãos que o repuseram na estante não repararam na folha de papel amarelado que escorregou para debaixo da estante. talvez neste estivesse a reposta ao mistério.
.Anonymous Anónimo 5/3/05 3:45 da tarde  

Anónimo

as coisas não deviam ter acontecido assim:
o chapéu esquecido em cima da mesa do café, que, por azar, não era o habitual e já nem se lembrava em que rua ficava; as luvas deixara-as cair no momento em que corria para apanhar o eléctrico; o casaco, uma antiguidade passada de geração em geração, sujara-o um pombo esquisito que adoptara o tecido luxuoso como ninho.
um homem não pode fazer a corte a uma mulher digna sem um bom chapéu, umas luvas decentes e um casaco de qualidade.

Anónimo

o rapaz olhou no olho negro do café o seu. por fim decidiu-se, pôs os sapatos ao lado da mesa e atirou-se de cabeça. mais tarde, ao secar-se estendido ao sol, no pires, pensou numa bela rapariga de cabelos de azeviche e deixou-se ir num sono morno de estio.